“Uma noite em Miami”: Malcolm X, Cassius Clay, Sam Cooke, Jim Brown e a imaginação histórica

Henrique Oliveira
4 min readJan 21, 2021

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Dentro de um quarto de hotel, em 1964, após o ainda Cassius Clay se sagrar campeão mundial dos pesos pesados do boxe, Malcolm X(Kingsley Ben- Adir), o cantor de Soul Sam Cooke (Leslie Odom Jr), o jogador de futebol americano Jim Brown (Aldis Hodge) e o próprio Cassius (Elin Goree) se reuniram para a comemoração. Porém, a tão esperada celebração regada a bebidas como queria Sam Cooke ou com mulheres como desejava Jim Brown, não iria ocorrer.

Ao chegarem no quarto que Malcolm X estava hospedado para assistir a luta de Cassius, eles foram convidados por Malcolm para que fizessem uma reflexão sobre o mundo que estavam vivendo, afinal, se tratava dos EUA da década de 60. O país estava fervilhando por causa da luta pelos direitos civis dos negros, sendo o próprio Malcolm X uma das principais expressões daquele momento.

O encontro entre esses 4 ícones contemporâneos não aconteceu, o filme “Uma noite em Miami”, que entrou no catálogo da Amazon Prime, no último dia 15 de janeiro, dirigido pela premiada atriz Regina King é uma adaptação de uma peça escrita por Kemp Powers, que trabalha com a imaginação histórica. O roteiro, portanto, busca ser coerente com as possibilidades que esse encontro poderia ter produzido tendo como base as personalidades dos indivíduos envolvidos, que servem nesse caso como evidência para a construção de uma narrativa que estabeleça uma relação de verossimilhança com o mundo histórico.

Por se passar em 1964, um ano antes do assassinato de Malcolm X, o mesmo é um personagem rodeado de dilemas e preocupações, seja pelo distanciamento da sua família, ou pela sua decisão de sair da Nação do Islã, dirigida por Elijah Muhammad, com quem Malcolm estava em conflito. É um Malcolm X preocupado com a sua vida, que poderia está vulnerável a traições dos homens de Elijah Muhammad ou a vigilância de agentes da FBI, a mando do seu mais famoso diretor J. Edgar Hoover.

Os dilemas também permeavam a cabeça de Cassius Clay, já que ele se encontrava em vias de se converter ao islamismo e entrar na Nação do Islã por influência de Malcolm X. Para isso, seria necessário abandonar prazeres como a bebida e se tornar um abstêmico, ao mesmo tempo em que ansiava comemorar o título mundial de boxe. Além de não saber que Malcolm X estava prestes a sair da Nação do Islã, o que viria a ser considerado pelo futuro Muhammad Ali como um erro.

A grande tensão do filme envolve Malcolm X e Sam Cooke, que é acusado por Malcolm de usar sua voz e canções para ser aceito pelos brancos, cantando músicas de inspiração gospel, enquanto pessoas negras são segregadas e mortas pelo racismo. Na visão de Malcolm X, Sam Cooke deveria compor músicas que falassem sobre a luta antirracista, que incomodasse a supremacia branca norte americana.

Um dos pontos altos desse embate entre Malcolm X e Sam Cooke é quando Malcolm coloca a música de Bob Dylan, “Blowin in the Wind” e diz para Cooke: “um rapaz branco de Minnesota fala mais das lutas do nosso movimento do que qualquer coisa que tenha escrito em na sua vida.” Sam Cooke iria gravar logo após a música “A Change Is Gonna Come”. Apesar de Sam Cooke aparecer no filme sendo pressionado por Malcolm X a se posicionar enquanto um ativista, o cantor teve uma participação no movimento pelos direitos civis e é considerado um dos criadores do cabelo afro que vai ganha força e se popularizar como “black power”.

A personalidade de Malcolm X está totalmente imbrincada com a do agitador político, propagandista, que reivindica o compartilhamento da identidade negra para tentar convencer Sam Cooke aderir a luta antirracista através da música, Malcolm X diz que o seu papel era fazer o cantor “acordar” para a condição do negro nos EUA. O conflito entre Sam Cooke e Malcolm X é imaginado pelo roteirista, tendo em vista as condições sociais dos personagens históricos, explicitada pelas diferentes estratégias de ambos para enfrentar o racismo.

Sam Cooke é representado[i] e visto por Malcolm X como “negro burguês”, um empresário negro, dono da gravadora SAR Records, que para responder as insinuações de Malcolm sobre não ser um antirracista, se vangloria de impulsionar a carreira de outros artistas negros, e ter ganhado muito dinheiro quando a banda The Valentinos pertencente a sua gravadora permitiu que os Rolling Stones gravassem a música “It’s All Over Now”. A estratégia política e comercial de Sam Cooke é apresentada como integracionista com a sociedade branca dos EUA, e isso é demonstrada quando o filme relembra de um fracassado show de Sam Cooke para um público branco numa badalada casa de eventos.

Porém, é Jim Brown, quem lembra a Malcolm X, que Sam Cooke é um homem negro que tinha autonomia econômica, havia rompido a pobreza, pois, Jim Brown acreditava que a verdadeira liberdade era a econômica. Em 1996, Jim Brown fundou a União Econômica Industrial Negra, para apoiar o empreendedorismo da comunidade negra. O seu conservadorismo econômico o levou ao conservadorismo político, ao ponto de Jim Brown ser uma das pessoas negras que apoiou Donald Trump, assumindo um caminho político totalmente oposto, pois, podemos também imaginar e praticamente dizer que Malcolm X, Sam Cooke e Mouhamad Ali seriam ferrenhos adversários de Trump.

“Uma noite em Miami” é um relato intimista acerca de 4 homens afro americanos e suas distintas visões sobre a sociedade em que vivem, porém, não deixa de ser uma interpretação marcada pela subjetividade de quem está contando essa história, de quem não apenas imagina as coisas como elas foram ou poderiam ter sido, mas que traz por meio das imagens e discursos como se vê o passado.

[i] Sobre uma análise crítica à representação de Sam Cooke no filme “Uma noite em Miami”, ver https://slate.com/culture/2021/01/one-night-in-miami-sam-cooke-change-is-gonna-come.html

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