Lupin: literatura de crime e ladrões cavalheiros no Brasil

Henrique Oliveira
15 min readJun 28, 2021

Sucesso de audiência na Netflix, a série Lupin em poucos dias após o lançamento da primeira temporada em janeiro, já havia batido o recorde de visualização de seriados também exitosos como Bridgerton e o Gambito da Rainha. Entre os dias 8 e 19 de janeiro, a série foi assistida por 70 milhões de assinantes em todo o mundo, se tornando a primeira produção francesa a figurar no Top 10 do streaming nos EUA. A ótima recepção do público a série da Netflix turbinou a venda dos livros sobre Arsène Lupin, que voltaram a ficar entre os mais vendidos na França, sendo lançada até novas edições por causa da procura pela obra inspiradora na Espanha, no Reino Unido e Coréia do Sul.

O ator francês Omar Sy, interpreta o personagem principal Assane Diop, filho de imigrantes senegalês, em busca de vingança e justiça para a memória do seu pai Babakar Diop (Fargass Assande), que se suicidou na cadeia, após ser condenado injustamente por roubar um colar da esposa do seu patrão, o empresário e filantropo Hubert Pellegrini.

Na série, Assane Diop tenta equilibrar a busca por reparação histórica com a paternidade do adolescente Raoul , além de lidar com o racismo incluso no fato de ser um homem negro, filho de imigrantes africanos da ex- colônia francesa no Senegal, de onde saíram as principais peças que compõem o acervo dos grandes museus da Europa, que agora são frutos de disputa para retornarem à África, como reconhecimento do roubo e expropriação do colonialismo.

O personagem de Omar Sy executa seu plano inspirado em Arsène Lupin, o famoso ladrão criado pelo escritor francês Maurice Leblanc, em 1905, ao todo foram 19 romances e 36 contos. Diferentemente do investigador inglês Sherlock Holmes, escrito pelo médico Arthur Conan Doyle, que se eternizou na literatura policial por resolver os crimes e seus mistérios por meio do método científico e dedutivo. Arsène Lupin se consagrou como um ladrão com senso justiceiro, que intriga e engana a polícia com seus métodos e disfarces, em roubos cometidos contra os ricos e principalmente por não usar a violência.

Segundo o roteirista George Kay, o fato de o personagem Assane Diop roubar dos ricos faz com que seus crimes sejam vistos como crimes sem vítimas, “ele tira de quem pode perder dinheiro ou tem seguro. Assim, o espectador não se sente mal de torcer por ele.” E no caso do Lupin da Netflix essa identificação com o personagem — ladrão também ocorre pela inegável representação racial imprimida por Omar Sy, apesar do mesmo ter dito numa recente entrevista ao jornal O Estadão, que não está preocupado em ser um representante dos imigrantes e negros em Lupin, o ator disse que prefere seguir sua paixão, sensibilidade, arte e as pessoas tiram delas o que quiserem.

Embora, Assane Diop não encarne o Arsène Lupin de cartola, casaca, monóculo e bengala, o personagem desde a infância é um leitor das histórias de Lupin e coloca em prática tudo que aprendeu com os livros. Os contos de Lupin que muitas vezes nem eram editados em livros tal qual conhecemos, eram publicados por capítulos, em revistas e nos jornais franceses do começo do século XX.

O sucesso dos contos de Lupin foi avassalador, em 1908 surgiu a primeira adaptação para o teatro interpretado por André Brulé. Em 1908 também foi registrada a primeira tentativa para o cinema, nos EUA, o filme foi dirigido por Edwin S Porter, tendo o ator William V. Ranows como Lupin. A primeira adaptação dos contos de Arsène Lupin para a televisão ocorreu no Brasil, exibida pela TV Tupi, em agosto de 1959, após o público ter recebido muito bem o filme “As aventuras de Arsène Lupin”, em 1957 nos cinemas, gerando uma adaptação de 11 episódios que ficou no ar até novembro de 1959.

Os contos de Lupin foram escritos por Maurice Leblanc durante 40 anos, porém, antes dele o também escritor francês Émile Gaboriau publicou seus romances em forma de folhetim no Let Peti Journal . O escritor utilizava algumas notícias de crimes cotidianos para elaborar suas obras, que ocupavam o gênero faits divers, reunindo casos inexplicáveis e excepcionais. Contudo, os escritos de Émile Gaboriau se enquadravam no “romance judiciário” e não no “romance policial”, pois, dizia respeito muito mais ao Tribunal, do que a descoberta do crime.

Desde o final da idade média e o início do período moderno na França já havia uma intensificação dos medos sociais e a multiplicação das imagens dos sujeitos considerados marginais. A legião de “malfeitores” como prostitutas, vagabundos, mendigos, assassinos, detentos e ladrões foram absorvidas pelo imaginário social através da literatura nas sociedades ocidentais, principalmente a partir do século XIX.[i]

O crescimento populacional das cidades não foi acompanhado pelo desenvolvimento da sua infraestrutura, o que deu a vida urbana um caráter assustador com suas vielas fétidas, escadas sombrias, povoadas de indigentes, em suma, uma infestação humana que produziria os mais monstruosos crimes e criminosos. Esses personagens ganharam relevância a partir de uma certa “urbanofobia”, apesar de existir crimes nos ambientes rurais, era a experiência de morar no meio urbano que marcavam os indivíduos que sofriam com a influência corruptora das cidades em crise.

Entre os sujeitos considerados indesejáveis e marginalizado pelo desenvolvimento urbano — industrial, os bandidos e salteadores começaram a ganhar destaque, suas imagens ganharam mais importância do que a dos mendigos e vagabundos, tornando os criminosos grandes bodes expiatórios. As narrativas literárias e biográficas sobre ladrões eram realizadas de maneira ambígua, em que a condenação moral explícita é atravessada pela heróicização implícita. Os ladrões encarnavam por excelência os profissionais dos crimes, que portavam todos os estigmas e vícios.

A partir da segunda metade do século XIX, os criminosos se tornaram objeto de estudo da antropologia criminal fundada pelo médico italiano Césare Lombroso, que em 1876 lançou a sua mais famosa obra “O homem delinquente”, no qual se empenhou em descrever os criminosos como sujeitos selvagens, frutos do processo regressivo da evolução humana. Se os ladrões eram uma ameaça não só real como também virtual, por que Arsène Lupin teve tanto sucesso sendo um ladrão? A resposta está no fato que Lupin foi construído pela literatura como um gentleman, um ladrão dotado de imaginação fértil, agilidade física, mental e elegância, com imensa habilidade de se esconder e escapar da prisão.

Literatura de crime e o romance policial

No Brasil do século XIX, o romance policial ainda não era um gênero estabelecido como aquele surgiu no final da década de 1920, o que poderia ser confirmado pelas inúmeras traduções de coleções com o título de “policiais” no país, ou pelas recomendações e regras que existiam para se fazer um “bom romance policial” na época. Então, o que se reconhece até hoje como “romance policial” circulava ao lado de outras narrativas com as quais mantinha diálogo.

Uma análise sobre a ficção de crime publicada no Brasil nas décadas finais do século XIX mostra um padrão semelhante ao que ocorria na Europa. Contudo, não se pode dizer que as produções nacionais apenas imitavam e reproduziam o que vinha de fora, os autores brasileiros recriaram, reinventaram, elaboraram novos temas a partir da matriz europeia, para abastecer um mercado da literatura do crime que se formou a partir da década de 1870.

Algumas dessas obras raras foram preservadas na Biblioteca Nacional, como “Memorial de um morto”, “História de um criminoso”, sobre o crime cometido por Michel Trad, quando este assassinou Elias Faraht e colocou seu corpo dentro de uma mala e queria joga- lo no mar, em 1908 e “Os estranguladores do Rio ou o crime da rua Carioca”, de 1906.

O romancista Aluísio Azevedo, conhecido por obras como O Cortiço (1890) e O Mulato (1881), escreveu literatura de crime que depois passaram por adaptações para se desvincular do gênero, como Memórias de um condenado (1882) e o Mistério da Tijuca (1882), que se transformaram respectivamente em Girândola de Amores (1900) A Condessa Vésper (1901). As tramas envolvidas nos dois romances descreviam os personagens envolvidos em segredos, histórias ocultas, numa narrativa com ações rápidas, amores suspeitos e um crime.

Em algumas cidades brasileiras como o Rio de Janeiro, do final no final do século XIX e nas décadas iniciais do século XX , houve um aumento da população alfabetizada, a ampliação do público leitor foi acompanhada com a modernização da produção de livros e jornais por meio da aquisição de máquinas de impressão. A publicação de histórias de crime foi importante para o funcionamento dos próprios jornais e era de interesse dos leitores, não só folhetins ficcionais, mas crimes reais como “O crime da rua carioca” ou o “Crime da mala” foi base para romances, notícias, poesia, peça de teatro e cinematografia.[ii]

O folhetim publicado nos jornais pode ser considerado para o século XIX, o que foi o cinema na primeira metade do século XX, um instrumento para criação de uma esfera pública definida pelo acaso, perigo e impressões chocantes, que abalariam as noções de segurança. O suspense como tônica da diversão moderna vira técnica de escrita, o folhetim assim como o romance policial vai funcionar como duplicador, amplificador e armazenador das informações, guia de locomoção informacional na rede urbana, depósito de expressões e reações diante dos contratempos cotidianos.

As mesmas leis de produção que regem a mercadoria passam a valer para o jornalismo e a literatura de folhetim, a necessidade da massa, do mercado consumidor gerou o folhetim, não há folhetim sem mercado e esse mercado está na multidão. Ao mesmo tempo, a multidão tem algo de excitante, repugnante e arriscado. O crescimento das cidades apela para uma nova sensibilidade, a cidade na modernidade além do espaço da contemplação é o local do crime e é disso que o romance policial vai cuidar.[iii]

As tipografias que produziam os jornais também eram responsáveis pela edição dos livros a exemplo de “O roubo de um diamante” (1881), impressa pela tipografia do jornal Rezendense. O suspense e a emoção em torno das histórias era uma das principais características da narrativa literária. A partir de 1920, o mercado de livros de crime se intensificou pela quantidade de traduções, além da variedade de histórias, havia coleções específicas que direcionavam algumas obras para “policiais e aventuras”.

“Romance original”, “romance histórico”, “biografia”, “crônica”, “romance de sensação”, “narrativa baseada em um crime sensacional e “história realista” eram designações estampadas nas capas dos livros de crime. O “sensacional” era inerente à literatura de crime do período, a criação da sensação decorria pelo apelo de exagero ao real, assim, cenas sangrentas, descrições de cadáveres e delineação do momento do crime eram contados em suas minúcias. A apresentação exaustiva tinha como objetivo gerar o máximo de emoções em um intervalo curto de tempo.

Um dos principais efeitos da estética sensacional é a criação de cenas e histórias que beiram a não capacidade de ser real, o hiper — realismo da ficção de crime gera um enredo cheio de mistérios, em algumas narrativas o criminoso vive situações que o retira do cotidiano e o transporta para um mundo distante das possibilidades do real, muito mais próximo do fantástico. Além de uma narrativa sensacional, a literatura de crime possuía elementos que também eram muito característicos da literatura popular, como a oposição entre bem e mal. Quando o criminoso é o sujeito principal, o personagem ganha uma forma dúbia, ao mesmo tempo em que é um homem inadequado para a sociedade, também figura como herói.[iv]

A literatura de crime ou o romance policial visam tornar seus leitores desconfiados e incrédulos, pois, ao mesmo tempo em que a narrativa é auto interpretativa, ela oferece armadilhas e pistas falsas que afastam da solução. O leitor e o detetive se identificam, já que ambos buscam a solução do enigma e a resolução do crime. As primeiras narrativas policiais tiveram como tema não o crime, mas sua investigação, o crime é apenas um contexto para que o detetive empregue o método hipotético — dedutivo priorizado pela ciência. O romance policial carrega uma grande carga ideológica em que o crime é apresentado como algo estranho, em que o criminoso é apresentado geralmente como um ser que por desrespeitar as regras sociais. Daí a importância do detetive em solucionar o crime para que o criminoso seja punido.

O aumento da criminalidade e o uso de meios ilícitos para se ter acesso a riqueza e bens materiais fez com que a polícia tivesse que agir para garantir a segurança nos centros urbanos. Nesse momento a figura do policial como um tipo social é explorado pela literatura. O desenvolvimento científico e o culto a razão do século XIX deixaram de legado para literatura a possibilidade dos seres humanos em solucionar todos os problemas por meio raciocínio lógico. Se de um lado temos a figura do detetive como uma máquina pensante infalível contra o crime. Do outro, aparece o criminoso como um ser extremamente inteligente, capaz de arquitetar crimes que só podem ser solucionados por mentes brilhantes.

Os ladrões cavalheiros no Brasil

No começo do século XX, a imprensa deixou de ser apenas um produto consumido por assinantes, voltado, sobretudo, para a propaganda política de grupos específicos, para se tornar empresas comerciais, que passaram a depender economicamente da venda de jornal em larga escala. Com a finalidade de atingir um público leitor cada vez maior, foram realizadas uma série de modificação na temática do seu noticiário, para assuntos que alcançassem um número maior possível de compradores, notícias sobre carnaval, futebol, e crimes sangrentos dominaram às paginas das folhas dos jornais.

O esforço de ampliação do público leitor também se traduziu na construção na construção de textos com uma linguagem mais simples, uso de subtítulos e manchetes que facilitassem a leitura das notícias que abordassem os dramas da vida. Do ponto de vista da impressão, as inovações técnicas do período permitiram a reprodução de foto, ilustrações e maior rapidez no processo de produção.

As histórias de crime, ao serem veiculadas por um dispositivo editorial maciço, entravam na vida das pessoas suscitando tanto o extraordinário e o inesperado, como relatando um pouco das histórias e problemas vividos por estes próprios leitores. Acidentes de trânsito, conflitos nos bares, violência doméstica, traições, o aumento dos furtos e assaltos eram elementos que perpassavam pela experiência cotidiana de diferentes segmentos da sociedade nas décadas iniciais do século XX.[V]

Nas manchetes dos jornais era comum que as cidades brasileiras, principalmente as suas capitais fossem consideradas ambientes inseguros, recheadas de ladrões que arrombavam estabelecimentos comerciais, casas, “batendo” bolsas e carteiras pelas ruas. Alguns desses ladrões se tornaram famosos graças a cobertura jornalística, que fazia dos crimes enredos de histórias contadas em matérias, cujo objetivo não era somente informar mas também para entreter os leitores.

É o caso do imigrante português Albino Mendes, envolvido com a falsificação de dinheiro, cuja trajetória e construção da memória se deu através de jornais e revistas na Primeira República, no Rio de Janeiro. Albino Mendes foi chamado por diversos jornalistas de Arséne Lupin, segundo a imprensa, sua maior façanha foi fugir da Casa de Detenção na noite de 01 de janeiro de 1915, utilizando, inclusive, dinheiro falso como forma de pagamentos aos guardas.

O jornal Gazeta de Notícias, na matéria sobre a fuga de Albino Mendes, do presídio, o chamou de “habilissimo criminoso, inteligente, sagaz, e ilustrado”, para fugir, Albino Mendes serrou duas grades, pulou para um cubículo ao lado da cela e em seguida para o telhado da enfermaria. Em fuga, Albino Mendes embarcou para o Uruguai, onde foi preso numa operação conjunta das polícias brasileira e uruguaia, mas voltou a fugir pelo teto de madeira com o auxílio de uma vela.

Nos períodos em que passou detido, Albino Mendes foi considerado um sujeito com comportamento exemplar, dentro do presídio fazia trabalhos com pintura, fotografia e desenho, além de ter escrito sonetos e contos, fazendo com que fosse percebido como um sujeito excepcional entre os detentos, pelo seu gosto e habilidade pelas artes, foi considerado um criminoso erudito.[vi]

A relação entre os criminosos reais e os personagens da ficção policial foi resultado do processo de divisão do trabalho nas redações dos jornais, que fez emergir o repórter, sujeito responsável por apurar as notícias nas ruas. Como inexistia faculdade de jornalismo no país, muitos dos repórter policiais eram formados ou estudantes de direito, medicina, outros eram escritores, literários ou cronistas, que encontravam na imprensa o lugar para por em prática seus saberes e inspiração.

A influência da literatura de crime e dos romances policiais foi fundamental para a confecção das notícias sobre crime e criminosos, exemplo mais importante do intercâmbio entre literatura e jornalismo, para construir história de ladrões cavalheiros pode ser encontrada na autobiografia “Memórias de um rato de hotel”, escrita a partir de entrevistas feita pelo jornalista/cronista João do Rio, com Arthur Antunes Maciel, publicada pela primeira vez em 1912, pelo jornal carioca Gazeta de Notícias.

“Memórias de um rato de hotel”, teve a sua última edição em 2015, pela Dantes Editora, e conta a história de Arthur Antunes Maciel, que ficou conhecido no Rio de Janeiro, entre as anos de 1899 e 1911, pelo pseudônimo de dr Antônio, considerado um célebre ladrão de hotel, de origem burguesa, um gentleman que se hospedava nos aposentos mais caros da antiga capital brasileira para roubar. O livro chegou a ganhar adaptação para o cinema em 2014, com o título de “Muitos homens num só”, protagonizado pelo ator Vladimir Brichta.

O capítulo 1 “a razão destas memórias”, relata que o jornalista João do Rio foi à cadeia entrevistar Arthur Antunes Maciel, por admirar um ladrão inteligente, fora de comum, para registrar as memórias daquele que seria o primeiro rato de hotel do Brasil, segundo o jornalista. Arthur Antunes Maciel era membro da família Maciel, do Rio Grande do Sul, se mudou para o Rio de Janeiro em 1899, após ter sido deserdado, ao roubar e tentar hipotecar um dos títulos de propriedade do seu pai, Leopoldo Antunes Maciel, o Barão de São Luís, dono de títulos, cargos públicos e fazendas.

Arthur Antunes Maciel, conta que tinha uma vida de abundância e riqueza, logo cedo aprendeu a ler, frequentando as melhores escolas, porém, se considerava um bom vivant, diz que não continuou com os estudos por causa dos seus gostos por mulheres, “achava que vida era o prazer, que o trabalho regular não fizera para mim, que era preciso gastar dinheiro com mulheres”. Segundo Arthur Antunes Maciel, ao adotar o nome de dr Antônio, não se tratava apenas de um disfarce, mas sim, de um ser superior que lhe ocupava o corpo, como se fosse uma dupla personalidade, um alter ego, “espírito satânico e diabólico”.

Por trás da publicação das “Memórias de um rato de hotel”, existe uma discussão sobre fidelidade da sua autoria, alguns críticos atribuem a obra a uma produção do imaginário do cronista João do Rio, que fundindo ficção e fato relatou tipos sociais do Rio de Janeiro do início do século XX, sobretudo um dos maiores temores das elites da época: o criminoso. Entretanto, o que transformou dr Antônio ou Arthur Antunes Maciel, num ladrão célebre na imprensa e na sociedade foi o fato dele ser um cavalheiro, um indivíduo “bem nascido”, com trânsito social entre os grupos sociais abastados, capaz de enganar suas vítimas e a polícia, o que lhe fazia não ser preso em flagrante, e as vezes ser solto ou absolvido nos tribunais.

Em 10 de novembro de 1907, no jornal Gazeta de Notícias, foi publicado o folhetim “Arsène Lupin, cavalheiro ladrão”, uma tradução do terceiro conto sobre a fuga de Lupin da cadeia. Nessa mesma edição do jornal, o cronista Olavo Bilac escreveu uma série de críticas à polícia do Rio de Janeiro, que estava sendo superada pela astúcia de um novo tipo de criminoso, o “ladrão civilizado”. Para Olavo Bilac, 95% dos delinquentes eram imbecis, que acabavam presos não pela eficiência da polícia, mas por serem estúpidos, porém, existiam 5% deles que eram ladrões inteligentes, que se apresentavam “como cavalheiros da mais fina sociedade”.

Durante os primeiros dias de novembro de 1907, os jornais cariocas falavam da existência da “confraria dos garotos bonitos”, de acordo com os jornalistas, para prender esses ladrões, a polícia sentia dificuldade pela necessidade de distinguir entre a “boa gente da sociedade” e os criminosos. Assim como Lupin, os “moços bonitos” eram homens simpáticos, elegantes, bem vestidos, que gastavam muito dinheiro nos circuitos de entretenimento da cidade.

Ao se referir a Arthur Antunes Maciel numa das suas crônicas, Olavo Bilac disse que “dr Antônio era um meliante modelo, que entrava na prisão com a mesma desenvoltura que entrava nos Salóns, sabia conversar de política com os políticos, de finanças com os banqueiros, de disciplina militar com os generais, de moda com as senhoras, de literatura com os homens das letras. Senhores! Saiba que é até um prazer ser roubado por um ladrão tão delicado e inteligente!” [vii]

[i] KALIFA,Dominque. Os Bas — Fonds — história de um imaginário

[ii] PORTO, Ana Gomes. Confeccionando ficções criminais: os arquivos e a literatura de crime

[iii] FONSECA. João Barreto da. Descrevendo inimigo: folhetim e romance policial como sistemas de vigilância da cidade moderna

[iv] LUCAS, Jeane. A subversão do gênero em Leopardos de Kafka

[v] OLIVEIRA, Marília Rodrigues de. “A tragédia da rua Januzzi”: narrativas sensacionais, justiça, ciência e moral no Rio de Janeiro da Primeira República

[vi] SANT’ANNA, Marilene Antunes. Albino Mendes: a construção do “Arsène Lupin” brasileiro pelos jornais da Primeira República

[vii] GALEANO, Diego. Memorias de um ratón de hotel: delito, presa y literatura en Brasil, 1890–1912

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