Discurso da guerra e confronto oculta que policiais brasileiros morrem mais fora de serviço e de suicídio

Henrique Oliveira
6 min readMay 11, 2021

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É possível considerar que houve um confronto numa ação policial que termina com 27 pessoas mortas acusadas de participar de uma troca de tiro e mais um policial civil, como a ocorrida na última quinta-feira (7), na favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro? A maior chacina da história do Rio de Janeiro aconteceu em 2005, quando 29 pessoas foram mortas por um grupo de extermínio, na região da Baixada Fluminense. A segunda ação com maior número de pessoas vitimadas foi realizada pela Polícia Civil no Jacarezinho.

Ao questionar a diferença entre quantidade de pessoas mortas que são acusadas de serem traficantes com a quantidade de policial, não quero de forma alguma tornar fato menor que um policial perdeu a vida ou desejar que mais policiais deveriam ter morrido, já que a própria polícia diz que houve um confronto, para que assim parecesse factível que houve um conflito armado. O que quero é questionar a narrativa e a suposta política de guerra que envolve a segurança pública brasileira.

O modelo adotado de repressão policial a venda ilegal de drogas nas grandes cidades brasileiras se pauta no enfrentamento armado a grupos responsáveis pelo tráfico em territórios da pobreza. Devido ao caráter fixo das empresas de varejo de droga, a política de segurança pública centralizou sua estratégia no enfrentamento pontual ao tráfico, visando efetuar com regularidade prisões, apreensões de armas, drogas e dinheiro.

Nos últimos 30 anos, o Rio de Janeiro e demais capitais do país passaram por um processo de acumulação social da violência, com a consolidação da rede varejista do mercado de drogas nas regiões pobres e habitadas por uma maioria negra, fazendo com que o tráfico de drogas fosse apresentado como o grande responsável pela violência urbana[i]. Tanto a violência interna ao mercado de drogas, que se traduz em disputa armada para defender e conquistar territórios com fins econômicos, como a repressão do Estado, levaram a uma corrida armamentista por parte dos traficantes e da polícia.

A reação dos governos e de amplos setores midiáticos ao novo cenário da violência, insegurança e medo frequente foi a metáfora da guerra. A ideia da guerra alimenta uma convocação para que a sociedade escolha um dos lados. E para vencer essa tal guerra foi criada uma enorme tolerância e até mesmo incentivos, a exemplo do ex- governador Wilson Witzel, que defendia usar atiradores de elite para executar pessoas que portassem fuzil, retirando o direito a vida da população negra e pobre, com o objetivo de combater traficantes de que drogas que habitam as favelas e bairros da periferia. Guerra esta que se converteu também contra os moradores das favelas que não são envolvidos com o tráfico de drogas, mas que são vistos como quase criminosos e tratados como suspeitos pelas forças policiais.

O ideal de guerra, confronto e combate tornou praticamente impossível e inaceitável qualquer tipo de questionamento a ações policiais que terminem com um elevado número de pessoas mortas, ainda mais quando entre os mortos existe um policial. Exemplo disso foi a jornalista da CNN Daniela Lima, que precisou se explicar no twitter e no programa 360, após ser acusada de minimizar a morte de um policial, ao comentar e questionar a tese de confronto apresentada pela Polícia Civil do Rio de Janeiro. Questionar a baixa letalidade contra a polícia não significa relativizar a vida de um policial, o número reduzido de morte de policiais é indicativo que os alegados confrontos não aconteceram e que a ideia da guerra é usada para ocultar o uso desproporcional da força!

No enterro do policial civil Leonardo Mello Farias, morto no Jacarezinho, o secretario da Polícia Civil, Allan Turnowski disse que geralmente quando a polícia entra nas favelas os traficantes atiram para fugir, mas que no Jacarezinho atiraram para matar, que eles ficaram para confrontar e não correram. Porém, não foi isso que vimos. O helicóptero da Rede Globo mostrou homens armados e desarmados pulando muros e lajes de casas, para fugir da ação da polícia no Jacarezinho.

Segundo relatos e imagens, uma das vítimas foi executada dentro do quarto de uma criança de 9 anos. De acordo com registros da própria Polícia Civil, as 27 pessoas foram mortas em 10 lugares diferentes e em apenas 2 deles teve perícia. Nos chama a atenção a concentração de óbitos em certos pontos, a exemplo da na Rua Areal, onde 7 pessoas foram mortas e da Travessa Santa Laura com mais 6 vítimas. Algumas das vítimas ainda enviaram mensagens para parentes relatando que estavam “encurralados”, foi o caso de John Jeferson Mendes Rufino, que mandou mensagem para sua irmã e Marlon Santana de Araújo, que ligou dizendo que estava preso numa casa e não conseguia sair.

E como já se tornou um padrão das ocorrências envolvendo a letalidade policial, dos 27 mortos, 24 deles tiveram seus corpos removidos sem realização da perícia, inclusive algumas das pessoas que foram presas relataram em depoimento que foram obrigadas pelos policiais a carregarem os corpos para dentro dos veículos blindados da Polícia Civil. Se tornou comum os policiais a pretexto de prestarem socorro as pessoas baleadas nos alegados confrontos, removerem os corpos para os hospitais, mas geralmente as pessoas são levadas ao hospital já mortas, apenas para atestar o óbito e com a intenção de impedir a realização da perícia desfazendo o cenário.

Ao rejeitar a tese de confronto em relação ao Jacarezinho, não quero com isso negar por completo a existência de um cenário de violência contra policiais, entre os dias 1 de janeiro e 5 de maio, ao menos 70 policiais haviam sido baleados no Rio de Janeiro e Região Metropolitana, segundo a plataforma Fogo Cruzado. Como já disse anteriormente, a atual política de segurança pública inundou o Rio de Janeiro e demais cidades brasileiras de armamentos, entre 2010 e 2019, a polícia carioca apreendeu uma arma por hora, segundo dados do Instituto de Segurança Pública, entre as 8.423 armas apreendidas em 2019, 45% eram pistolas e apenas 6,5% eram fuzis.

Contudo, o discurso da guerra pressupõe a existência de uma equidade entre os dois lados no conflito, só que quando olhamos o nível da letalidade que atinge policiais e suspeitos, vemos uma imensa desigualdade, mesmo que os traficantes estejam portando certos tipos de armamento. Será que é possível dizer que uma maior mortalidade do lado dos acusados de serem membros do tráfico de drogas se deve a superioridade técnica das polícias, resultado do processo de formação do policial? Entre 2007 e 2021, as ações policiais foram responsáveis pelo maior número de pessoas mortas no Rio de Janeiro: 19 mortos no Complexo do Alemão (2007), 13 mortos no Fallet/Prazeres (2019), 13 mortos no Complexo do Alemão (2020) e 12 mortos em Itaguaí (2020), 27 no Jacarezinho(2021).

Segundo o discurso policialesco, existe de um lado uma criminalidade muito bem armada, agressiva e letal, entretanto, quando olhamos os números produzidos pela realidade constata-se, que em todo o Rio de Janeiro, em 2019, 21 policiais morreram em serviço, enquanto a polícia bateu recorde e matou nos primeiros 8 meses do mesmo ano 1.249 pessoas, numa média de 5 por dia.

Para termos ideia, a Covid 19 matou mais policiais no Rio de Janeiro, do que os ditos confrontos armados, segundo o Monitor da Violência, a pandemia matou 65 policiais civis e militares em 2020. Em todo o Brasil, o coronavírus matou 465 policiais, o número é mais que o dobro dos 198 policiais que foram assassinados em serviço ou de folga. No Brasil, cerca de 80% dos policiais são assassinados fora de serviço.

Além de morrerem mais fora de serviço, o 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, demonstrou que o número de policiais que cometem suicídio é superior ao número de policiais que são assassinados nos confrontos. Portanto, questionar ações policiais com o alto número de pessoas mortas não é tratar a vida do policial como descartável, nem muito menos desejar que morram mais policiais, é jogar luz que em nome de uma suposta guerra, o que estamos presenciando é um verdadeiro massacre promovido pelo Estado brasileiro contra a população pobre e negra do país, esteja ela com ou sem farda.

[i] MISSE, Michel, Sobre acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Conferência na Academia Brasileira de Letras, em 3 de julho de 2008. Civitas Porto Alegre v. 8 n. 3 p. 371–385 set.-dez. 2008

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